Performances
Dominar a imagem feminina e colocá-la a seu próprio dispor,
deturpar antigas e modernas formas de representação.
Meu processo criativo nasce de buracos no meu peito.
Esse buraco Mulher, com maiúscula.
Esse buraco comum a todas nós. Esse que, até mesmo antes que eu me desse conta, era fruto da imposição de um esquema patriarcal ao meu corpo. Cistema que se apodera, deturpa, colocando a seu dispor as formas de representatividade das mulheres ao longo dos séculos, que se infiltra até mesmo nas possibilidades da imaginação, naturalizando a falácia de um lugar subalterno como fruto das nossas próprias capacidades.
Os saberes do corpo, o grito do corpo, o estado de urgência desse corpo, o corpo como campo de batalha. Fui percebendo que ele era o único que eu tinha e paradoxalmente também não era meu. Tive que travar uma luta por esse espaço, ganhando cada vez mais consciência do que ali se passava, o que me permitiu ver as feridas de uma outra perspectiva, já não pela ótica da culpa cristã.
Expurgar do corpo toda essa dor, toda essa doutrina, todo esse sistema de dominação não é tarefa fácil. Os direitos mais básicos sempre tem que ser construídos do zero para cada uma de nós nesse processo de despertar, de se empoderar de si. É uma descoberta que vem na maioria das vezes pela dor, pela revolta. O nãocabernomundo torna-se uma vantagem, uma potência para a mudança, a criação de um novo mundo, baixo outros valores.
As minhas feridas são tão íntimas que tornam-se universais. Recorro a elas para encontrar essa cartografia afetiva, para o reconhecimento delas no meu corpo e poder trazê-las à tona de uma forma exponencial. A apropriação da estética, da imagem e do som enquanto forças transformadoras possibilita a criatividade e a imaginacão para a criação de mundos possíveis. Temos que repovoar o imaginário, recuperar nossa memória, unirmos. Sermos conscientes que vivemos uma ficção imposta pelo poder normativo, que o discurso que regeu nossas vidas por tempos e marcou nossos corpos pode alguma vez até ter saído da nossa própria boca. Que nada realmente tem de próprio diante do sonambulismo, do estado de dormência violenta ao qual somos submetidas a diario. Ensinadas mais do que ninguém a mortificar o corpo, a mutilar-se na tentativa de caber no mundo da ficção alheia, onde não há espaço para nós, a menos que sejamos vítimas silenciosas.
Assumir o corpo como matéria prima, como plataforma de uma rede de conhecimentos e afetos de si e para com o outro muda toda uma visão do que realmente é necessário para agir. Acarreta um posicionamento crítico, uma postura política, uma necessidade de ação transformadora, uma incessante busca por estratégias.
O que me adormecia, me doía, me paralisava, hoje é motivo pelo qual cada vez fico mais forte. Assumo este lugar, já não espero. Co-crio com o que tenho de mais potente, meu corpo, acredito no outro comum que cruza com esse movimento pelo caminho e já não pode mais ser o mesmo. Reconhece que ao mesmo tempo que descobre, percebe que sempre soube, em algum lugar de si, tudo isso. Esse, como eu, em seu momento, passa a exercer uma agência. Entra em um estado de contaminação fulminante, passa a ser portador e propagador do vírus da revolução.
Mato diariamente dentro de mim as vozes implantadas no meu cérebro, as barreiras impostas ao meu estar no mundo enquanto sujeita, substância e matéria. Faço do corpo, não um limitante, mas sim um espaço gerador que me acompanha onde quer que eu esteja, que me lembra do passado, me transporta pelo presente, me dá a possibilidade de criar um outro futuro. É nele e com ele que atravesso o outro, que invado os pensamentos, que provoco tensões, deslocamentos, que modifico outros corpos, que me junto a eles.
Muitas vezes esse afeto não se dá de forma tão agradável, pela sua natureza questionadora, por trazer a tona o que está debaixo do tapete, por se colocar não somente diante das irmxs mutantes sobreviventes inventivas conscientes, com as quais encontro conforto, companhia, sabedoria, mas também diante daquele que não quer ver. O que não quer perder seu lugar de privilégio, de ignorância, que necessita de corpos escravizados para sua existência e afirmação.
A liberdade da imaginação, do desejo como potência transformadora e libertadora, muito me interessa, pois percebi em mim o quanto era determinante para minha postura diante da vida. O quanto ela estava sendo bloqueada e manipulada sutil e brutalmente. O quanto isso interferia na minha autoconfiança, modificando a minha forma de ser e de estar no mundo, deixando assim o lugar desocupado para a ficção masculina de este lugar ser seu por direito. A reviravolta aconteceu, os livros chegaram às minhas mãos, as teorias novas e ao mesmo tempo ancestrais, junto com o repertório do meu corpo, minhas experiências, viagens de busca, por dentro de mim e pelo globo, o encontro com pessoas que me fascinaram, me apresentaram de distintas formas o problema e também as soluções possíveis.
Surgem os experimentos performáticos como forma de expressão. Para mim a superficialidade é algo impraticável. Me entrego às profundezas do processo e o considero como parte fundamental para a materialização da ação. A performance nunca será substituída pelo seu registro, embora ele possa funcionar como ferramenta de reverberação das questões abordadas na ação.
Buraco no meu peito
Performance e vídeo instalação em dois canais.
40min. 2018.
com Beatriz Salles
registro Brás Moreau Antunes
Comissionado pela disciplina de Cinema Queer do curso de Cinema e Audiovisual, ministrada pelo Prof. Dr. Henrique Codato.
UNIFOR - Universidade de Fortaleza, Brasil.
Biológico
Performance.
“Biológico” faz uso da abjeção para questionar signos e lugares associados à gênero, sexualidade, hegemonia e reprodução.
40min. 2018.
Registro: Brás Moreau Antunes.
Apresentada em público no evento Maloca Dragão 2018, Fortaleza, Brasil.
Golpe Abjeto
Performance.
10min. 2017.
Registro: Brás Moreau Antunes
Apresentada em público no contexto de Encerramento dos Laboratórios Artísticos do Porto Iracema das Artes - Escola de Formação e Criação do Ceará, Praça dos Leões, Fortaleza, Brasil, 2017.
Dia Infinito
No dia 08 de março, DIA INFINITO na Universidade de Fortaleza. Colocando em evidência o que somos obrigadas a suportar caladas, pois assim a maioria de nós foi educada, ensinada a temer, moldada.
Todo corpo é politico. Num passeio pela universidade, o corpo feminino. Traje minissaia e blusa com orifícios, os mamilos à mostra. Não portava calcinha e estava visivelmente menstruada. A bicicleta levava na garupa uma caixa de som reproduzindo insultos ouvidos diariamente por muitas mulheres. O áudio se mesclou com os insultos dirigidos a mim no momento da ação e a performance concluiu-se com o oferecimento do próprio corpo despido, devolvendo a violência e a constante ameaça de estupro e morte.
O corpo agressor não suporta essa imagem. O primeiro que te querem roubar é o valor. Se repetiram os xingamentos nas redes sociais, com todos os dispositivos de controle ativos para que a situação não se repita. Outra vez a máquina doutrina: "veja o que aconteceu com ela, é melhor você ficar no seu canto, bela, recatada e do lar, que você fica protegida" sob o jugo do opressor. Utilizam sem sucesso os meios de punição e tentativa de silenciamento da nova inquisição. Estamos inseridas em um sistema patriarcal com seus dispositivos de controle, sua fabricação de verdades fálicas, necessárias para se legitimar.
Seguimos ao longo de muitas lutas coletivas e pessoais. Já não vamos seguir o jogo ao qual não fizemos as regras. Minha intenção mais profunda é o encontro, juntar-nos em manadas, existirmos, mulheres, todxs aquelxs com quem compartilhamos amor, unidas, criadoras de outro mundo possível onde não acendemos as luzes.
181
No dia da votação da PEC 181/2015, em 2017, que propunha interferir na interpretação de todas as leis e portarias que hoje autorizam serviços de aborto legal no Brasil, permaneci amarrada por horas.
Nada dizia que não poderiam me soltar.
Olhares e toques masculinos foram frequentes durante a ação, sentiam-se à vontade, sem permissão. Era como se minha subjetividade desabitasse meu corpo. Abjeto, passível de violação, controlado pelos aparatos da sociedade patriarcal colonizadora, com seus mecanismos de extermínio.
Estamos vivas. Não seremos vítimas silenciosas. Invadiremos seus sonhos. Repovoaremos a imaginação com toda nossa memória que incessantemente tentam apagar ao longo dos séculos. Caminharemos juntxs por nossas ruas e bosques, livres, potentes. O que lhes resta é o debater-se na agonia de ativar os mecanismos do caos, na tentativa vã de atualização de um sistema esgotado. Nada nos parará. Nos fortalecemos no invisível, criamos nossas próprias tecnologias, pele, osso, fibra óptica, união.
Não seremos incubadoras.
Novembro de 2017.
Registro: Brás Moreau Antunes
Assistência de produção: Arthur Almeida